J. M. Felgueiras
Mil e uma noites (12.09.06 - 10.06.09)
Manifesto? Depoimento? Testemunho?
Pouco importa… são palavras,
em que partilharei convosco o tempo decorrido desde 12.09.06, dia da
minha biopsia, até ao momento actual, completadas que foram 1001 noites
sobre aquela data.
Faço-o para que melhor
percebam a pessoa que sou, podendo assim continuar a merecer uma
compreensão, que não me queixo de alguma vez ter faltado, mas também,
porque julgo ser obrigação de quem passa por estas situações, partilhar
a sua experiência com os outros a fim de que a mesma possa servir de
incentivo e alento para enfrentarem melhor, eventuais adversidades que
lhes possam surgir.
Felizes aqueles que, como
eu, têm a oportunidade de o fazer.
Tudo começou então por uma
biopsia, determinada após vários meses de acompanhamento urológico e de
análises de PSA com valores moderadamente preocupantes. Após uma semana
duma espera mais ou menos ansiosa, vieram os indesejáveis resultados:
adenocarcinoma da próstata, score 8 de Gleason. Esta escala é de 1 a 10,
sendo que os graus 8, 9 e10 são considerados muito graves.
Fiquei atordoado e
incrédulo, pensando estar a viver um pesadelo. Admiti poder tratar-se
dum erro de diagnóstico, procurando a desesperada fuga a uma realidade
que manifestamente não queria enfrentar. No entanto, de súbito chegou a
compreensão de que o mundo desabara impiedosamente sobre mim,
deixando-me sufocado e impotente para reagir. Com essa compreensão vem
agarrado o imediato receio, não da morte, mas da perda para muito breve
daqueles que nos são mais queridos.
Veio de seguida a
necessidade urgente de procurar um médico reputado e, de ouvir o seu
veredicto e, embora as perspectivas, face aos resultados, fossem as
piores, uma réstia de esperança permaneceu comigo.
Foi assim que, 4 dias depois
de conhecidos os resultados, chegava ao Porto para ouvir confirmada a
gravidade da situação e que não havia alternativa: prostatectomia total
e tão rápida quanto possível. Entretanto, repetição das análises para
confirmação, bem como cintigrafia óssea e TAC para averiguar da
possibilidade de existência de metástases. Enquanto as análises
confirmaram os resultados anteriores, os exames referidos revelaram-se
favoráveis.
Apesar da urgência, razões
que se prenderam com a indisponibilidade do médico empurraram a marcação
da cirurgia para 7. 11. 06, ou seja, para quase dois meses depois!
Foi este o tempo a que me condenaram para suportar um inevitável
desgaste psicológico (queixas físicas nunca tive) a menos que
conseguisse, o que me parecia tarefa impossível, não permitir em todo
este período ser atormentado por quaisquer pensamentos sobre este
assunto. Por estranho que pareça consegui-o, excepção feita a uma única
noite, em que me deixei, por escassos 5 minutos, arrastar em cogitações
sobre o negro futuro que tinha pela frente. Ao aperceber-me dos caminhos
em que me estava a deixar envolver parei e, não mais permiti que esta
situação voltasse a ocorrer. À distancia, reconheço hoje o quanto esse
período exigiu de mim em termos mentais. Afastar da cabeça, em absoluto,
de forma continuada e durante espaço de tempo tão longo, aquilo que
naturalmente tenderia a ser a minha preocupação, foi tarefa muito, muito
complicada.
Tive comigo, como única
transigência, a de me permitir ir vendo na net (apercebi-me que a Tecas
e os meus filhos também o faziam nas minhas costas) o que de mais
relevante importava saber sobre a matéria, nomeadamente, sobre a
incontinência e a questão sexual que, em percentagens diferentes
consoante as fontes, forneciam valores muito pouco animadores com
probabilidades bastante elevadas de sequelas nestas duas áreas.
Para tudo fui encontrando
forças com a ajuda de um Deus que a doença me fez reencontrar ao fim de
muitos anos. Foi ELE que impediu a revolta, bem como a sacramental
pergunta do “por quê eu?”, que até hoje sempre me recusei a fazer.
Pensei sim em todos aqueles que, estando a viver momentos de felicidade,
ignoravam que iriam ter um fim mais breve do que o meu. Quantos ao longo
destas 1001 noites nos foram deixando?
A ELE devo a fé e a
esperança de que tanto precisei em período de tantas angústias e
incertezas. Um padre, que entretanto conheci, ajudou neste reencontro,
ao mesmo tempo que me foi prescrevendo argila ora, em tratamento local,
ora por ingestão. A referida ajuda de Deus foi completada de forma
extraordinária por uma maravilhosa família que, em primeira linha,
mulher e filhos me deram. Muito amor, muito carinho mas sem pieguices ou
proteccionismos exagerados. Quem está nesta situação não pode sentir
compaixão, essa coisa que não merece, quanto a mim, ser elevada à
categoria de sentimento, por ser como que uma espécie de caridade pirosa
que não nos anima, não nos fortalece mas antes pelo contrário nos
fragiliza. Não sei se o conseguiram por intuição ou por bom senso, só
sei que o conseguiram.
Penitencio-me hoje por
inicialmente não me ter apercebido, de tão obcecado que estava comigo,
quanto eles sofreram também durante todo este tempo. É que sabê-los
naturalmente apreensivos e preocupados é diferente de dar o devido valor
a um sofrimento que também foi deles.
Momento crucial, foi o
acompanhamento à cirurgia dos meus três filhos, que resolvendo como
puderam os seus problemas laborais, e sacrificando dias de férias, foram
preciosa e inestimável companhia para mim e para a Mãe. De elementar
justiça é, referir ainda, a hospitalidade recebida dos cunhados da “Inbicta”.
Não quero no entanto entrar em citações de que muitas outras pessoas
seriam, merecidamente, também credoras. Estas linhas não visam um
agradecimento, que nestas circunstâncias seria quase ofensivo, mas tão
somente traduzem o comovido registo de factos que me tocaram
profundamente.
Chegados ao dia 6. 11. 06, e
depois de preparadas algumas papeladas “just in case”…, partimos então
para o Porto para o internamento e operação no dia imediato. Disfarcei
quanto pude, a emoção sentida ao bater o portão de casa e ao lançar uma
última olhadela ao cão. São despedidas mentais que fazemos que, sendo
apenas pormenores, em certos momentos se elevam a “pormaiores”.
Durante a viagem uma paragem
na Mealhada, para trincar o leitão de mais difícil deglutição da minha
vida, e a que não consegui retirar um indisfarçável sabor a último
desejo de condenado.
Gostaria de deixar claro
que, não estando a querer enveredar por lamechices piegas, não posso no
entanto separar as situações, do enquadramento emocional em que as
mesmas foram vividas.
Quer a cirurgia, quer os
dois dias de internamento que se seguiram correram da melhor forma e sem
que alguma vez tivesse sentido a mais pequena dor. As horas de ansiedade
vividas pela família, enquanto decorria a cirurgia, foram recompensadas
quando, ao sair do bloco operatório, e segundo mais tarde me contaram,
em completa parvalheira anestésica, desafiei todos para uma cerveja
enquanto ia dizendo que tinha sido muito fixe. Também em momentos
dramáticos ocorrem situações caricatas!
Pior, foi contudo sentir-me
algaliado e ter de permanecer três semanas nessa incómoda situação.
Aquilo a que clinicamente chamam de forma pomposa, espasmos, não passa
de uma fortíssima vontade virtual de urinar. Uma “apertadinha” elevada à
décima potência de fazer aquilo que, calma e tranquilamente está
escorrendo para um saquinho. Foi sem dúvida a pior recordação do período
pós-operatório.
Passadas as referidas três
semanas, e tirada que foi a algália, era suposto, se tudo tivesse
corrido pelo melhor, que as coisas voltassem a breve trecho a uma
relativa normalidade. Relativa, porque sem entrar em pormenores há
sempre alterações irreversíveis, previamente esperadas, e independentes
das já referidas anteriormente que podem ou não ocorrer.
Regressado a casa e
festejados os meus 63 anos, de forma totalmente inesperada, entrei nos
primeiros dias de Dezembro em profunda depressão. É difícil de explicar
o que foram esses três dias. Uma angústia tremenda, uma aflição
permanente, que se fazia sentir mais fortemente a partir do entardecer,
tomou por completo conta de mim. Não sei, nunca soube, o que me afligia
e atormentava. Fiquei no entanto a saber o que era uma depressão, doença
que muita gente resolve dizer que tem, sem sequer saber o que isso é.
Sem estar a esconder nada, pois nunca pensei nisso, fui levado a
compreender a razão porque algumas pessoas se suicidavam. O estado em
que me encontrava, não tendo qualquer explicação lógica, tinha no
entanto uma explicação clínica: traumatismo pós-operatório.
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Foram três dias terríveis
que não hesitaria em descontar à minha existência, ou seja preferia
morrer três dias mais cedo, a ter passado por esta insuportável
experiência de uma cabeça aterrorizada e vazia. Ainda hoje tenho
dificuldade em falar sobre este assunto.
O ansiolítico prescrito
produziu os seus efeitos dentro dos prazos previstos, mas ficou por
alguns meses o terror de uma recaída, facto que só por si podia
efectivamente desencadeá-la. Alguns leves e esporádicos sintomas de uma
recaída, que timidamente espreitaram nos meses imediatos, foram
prontamente debelados.
Comecei entretanto a
aperceber-me que havia sequelas graves, que o tempo e alguma terapia não
conseguiram resolver e que alteraram profundamente a minha qualidade de
vida.
Foram tempos vividos, entre
a esperança de uma recuperação que tardava, e a desilusão de ver o tempo
a passar sem que ela ocorresse. Os resultados favoráveis das análises, a
que trimestralmente me fui submetendo, foram de algum modo funcionando
como balão de oxigénio. Se o corpo ia resistindo não podia ser eu a
matar a alma. Maleitas menores, que entretanto foram surgindo, e que
nada tinham a ver com o problema principal, nomeadamente ao nível oral,
foram deixando marcas que me iam abanando e que, não me abatendo, me iam
minando.
Aqueles que de forma
inocente, consideravam que estava sempre a falar do mesmo assunto, nunca
conseguiram entender, nem esta forma de terapia, nem que não é possível
esquecer algo que alterou por completo TODOS os momentos da minha vida
desde que me levanto até que me deito. Porque esta incompreensão se
torna irritante, e sem entrar em grandes pormenores, vou ser um pouco
mais explícito. Será que ocorreu a algum desses críticos, que a
ginástica que há anos fazia no quarto ao levantar-me passou a ter que
ser feita na banheira? Acham que à partida, e face a este
condicionalismo, os exercícios podem ser os mesmos? Será muito difícil
de entender que todos os actos de higiene pessoal, e não só, tiveram de
ser alterados? Será de facto necessária uma grande dose de imaginação
para entender que esse conceito simplista do “mija para o penso… e que
se lixe” é profundamente irrealista.
Desculpem lá a irritação,
mas para mim, aqueles que assim pensam, se estivessem no meu lugar,
levavam a vida cheios de complexos, a esconder esta realidade que eu sem
problemas partilho convosco. As alterações, as limitações, não são
passíveis de esquecimento, é necessário é arranjar maneira de nos
adaptarmos a elas, e de as tentar ultrapassar sem que isso signifique
que as possamos ignorar. Se falar no assunto incomoda os outros, isso já
é outra questão, mas então digam-no claramente.
Mas deixemos isto para
continuar esta viagem no tempo.
Em cumprimento duma promessa
feita, a poucos dias da operação, e que sucessivamente foi sendo adiada,
acabando por ser cumprida um dia antes de se completar um ano sobre
aquela data, RECASEI-ME.
A mesma mulher que comigo fora ao Registo, 35 anos antes, acompanhou-me
agora ao altar. Reconheço que razões temporais, não podem conferir ao
acto as mesmas responsabilidades e a mesma importância que revestiu a
sua versão civil, no entanto não foi para mim nem um mero formalismo,
nem o simples cumprir de promessa feita. O facto de terem podido estar
presentes estas três magníficas sobras, testemunho vivo desta já longa
ligação de amor, foram um contributo importante para este momento de
felicidade.
Foi precisamente a meio deste acidentado percurso, que um grave episódio
de saúde do meu filho Miguel, veio provocar novo terramoto na minha
vida, deixando-me positivamente naquela do “que mais me irá acontecer?”
Supliquei a Deus com todas
as minhas forças que não nos abandonasse, sentindo desde o primeiro
momento que a minha prece havia sido escutada. Mas seria assim? Deus
ter-me-ia prometido alguma coisa, ou simplesmente eu desejava que ELE me
tivesse prometido aquilo que eu precisava de ouvir? Penso que a fé foi
mais forte que a dúvida.
Pedi-LHE ainda que se
tivesse de ser um de nós que fosse eu, pois estando preparado para
morrer não estava preparado para perdê-lo. Como se alguém alguma vez
possa estar preparado para uma situação destas. O desespero por vezes
tolda-nos a clarividência.
Com tudo isto, e por tudo
isto bati no fundo. Os patamares de confiança desceram a níveis
imprevisíveis e, só agora me apercebo verdadeiramente da profundeza dos
abismos a que desci. De forma progressiva, e sem que disso fosse tendo
consciência tinha-me tornado quase incapaz de ficar só ou de me deslocar
sozinho. Nestas circunstâncias, a tendência é para nos tentarmos iludir,
que apenas não nos apetece, e que “se quiser fico” ou “se quiser vou”,
fugindo assim à realidade que não convém.
Havia que reagir, que dar a
volta, que recuperar a confiança perdida e trepar pela escada, de onde
em despercebida mas contínua escorregadela me havia deixado estatelar.
Sinto, que novamente Deus
esteve comigo ao indicar-me o caminho a seguir levando-me a recusar a
possibilidade de vir a desaparecer deixando a todos, mas principalmente
à Tecas e aos meus filhos a imagem dum fraco, dum hesitante, dum
incapaz, de alguém que apavorado, vivendo se tinha deixado morrer. As
últimas imagens são as que ficam e arriscava que a imagem do homem
forte, confiante, assertivo, com algum sucesso pessoal e profissional
(passe a imodéstia) se esfumasse definitivamente.
A costumada condescendência
marital, levou-me até Praga em Setembro de 2008 naquela que foi a
primeira saída para o estrangeiro depois destes tempos atribulados
Aquilo que começou por ser um turismo de arrasto, acabou por ser um
sucesso turístico e terapêutico. Não seja esta confissão aproveitada por
alguém, para ganhar novos fôlegos que possam vir a quebrar o meu
sossego.
Não considerando que este
momento tenha sido ponto de viragem, foi importante na consolidação duma
recuperação que dava os primeiros passos. Aliás, exactamente da mesma
maneira que não me tinha apercebido exactamente da minha queda, ou pelo
menos da sua verdadeira extensão, também não tive, pelo menos na fase
inicial, uma consciência muito clara da minha ascensão. Hoje sinto que
os índices de confiança voltaram e fazem de novo parte da minha
personalidade. Se não estou ainda exactamente o que era estou muito
próximo disso, não esquecendo, no entanto que este reencontro comigo me
apanha quase três anos mais velho. Que importa que nem todos os
problemas tenham ficado resolvidos se eu próprio me resolvi.
A felicidade por vezes é uma
bênção mas é certamente uma conquista. Na vida vamos sofrendo, vamos
tendo momentos difíceis, vamos experimentando desilusões vamos
enfrentando desafios… mas tudo isso é passageiro e inevitável, acabando
por nos orgulharmos das marcas que foram deixadas pelos obstáculos que
transpusemos. É assim que, quando olho para trás o faço com algum
orgulho, sentindo-me, com a ajuda de Deus, vencedor da mais dura batalha
que até hoje a vida me fez enfrentar. Se vos tinham ficado algumas
dúvidas se em tudo isto não haveria uma ponta de vaidade desfaçam-nas
porque há mesmo. É um orgulho e uma vaidade que não são pecado, por
serem apenas a euforia dum regresso.
Sinto que estou forte, digo
que estou forte, e agora só me resta mesmo ser forte, na certeza que a
força manifesta-se na fraqueza pois só quando estamos fracos podemos ser
fortes.
Se estes “Retalhos da vida
de um… doente curado” pelo menos psicologicamente, a que chamei “As 1001
noites” permitiu que me tenham passado a conhecer melhor nas minhas
fraquezas e nas minhas forças, ou se puder aproveitar a alguém, então
não terá sido tempo perdido.
Fiquem bem e obrigado pela
vossa paciência!
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